O outono tem esse cheiro
De passado
Não sei porquê
O outono tem esse cheiro de morte
Ruas vazias, casas vazias, cidades inteiras vazias
O outono é um vácuo
A eternidade, segundo Borges
É uma cópia despedaçada do tempo
os poemas aqui publicados estão em constante mutação. jamais confie em um poema inacabado.
O outono tem esse cheiro
De passado
Não sei porquê
O outono tem esse cheiro de morte
Ruas vazias, casas vazias, cidades inteiras vazias
O outono é um vácuo
A eternidade, segundo Borges
É uma cópia despedaçada do tempo
Junto com o outono
vieram os vikings
os marujos
toda sorte de bárbaros
e piratas
As ruas estão um tanto em pânico
um tanto em festa
Busco semblantes familiares
entre os escombros de medo e alegria
Uma estrutura de concreto armado
sustenta meu coração no alto
Vejo corpos translúcidos, lindos
carregados por guindastes
alguns estão mortos
Os vivos celebram a ignorância
de seus grilhões
com adoráveis bolas de ferro
atadas ao tornozelo
Meus olhos são duas granadas
meus pulmões são artefatos de guerra
palavras são como projéteis que se enchem de pólvora
antes de explodirem em chamas sobre a cidade
Atravesso o elevado Costa e Silva
um senhor tira confetes do cabelo de sua namorada
Na República uma criança chora
suas bolas de gude confundiram-se com estilhaços
Mendigos, putas, traficantes, poetas, operários,
estudantes, bêbados, atrizes e filósofos
todos foram convocados para essa formidável festa de despedida
os demais permanecerão em suas trincheiras
buscando a sorte em jogos de azar
colecionando peças amputadas da realidade
dobrando a esquina enquanto uma horda de revolucionários
escreve o poema do século em plena praça pública.
explico:
a estante que fica ao lado da cama
está repleta de digitais
e seus olhos
e cada mão sua que tocou um livro –
venha buscá-las.
me olham com desconfiança
a cada dia que digo
que não preciso trocar os lençóis
tampouco as fronhas –
eles não sabem
mas existem coisas suas ali
delicadezas como o cheiro que escapa
da sua nuca
e restos grosseiros de unhas e pentelhos.
uma bituca de hollywood
fica pendurada no cinzeiro
dia após dia
tenho preguiça (e medo e dúvidas)
você precisa despejar-se a si mesmo
é urgente.
porque não posso
não tenho tempo
disposição
não tenho outras coisas pra colocar
nos espaços que ficarão
irrevogavelmente vazios
porque sou covarde
e sinto saudade.
por isso é urgente que você volte.
Eternidade é o telefone que não toca
é o barulho do portão que se fecha
o olhar pousado na nuca de quem vai embora
Eternidade é o movimento de duas línguas
conhecendo a travessia uma da outra
é o tempo que o suor dele leva
pra secar nas minhas costas
Eternidade é aquilo que dura um final de semana
Breve é uma vida inteira.
É o que estava escrito do lado de fora do envelope. Caixa alta. Dentro um roteiro. Ele não estava lá. Quer dizer, até estava, mas como uma espécie de figurante bonitão e relapso. E eu esperando uma jornada do herói, porque essa história precisava muito de um clímax. Um clímax, eu disse, não essa coleção de anticlímax em que transformaram a minha vida. Por isso pedi para trocarem os roteiristas. Dei instruções claras: mais Walt Disney menos Arriaga. Isso da mocinha se foder no final só é legal nos livros e nas telas de cinema. Na vida real a gente pode se dar bem de vez em quando. Eu acho. Por isso pedi pra trocarem os roteiristas.
Bem, parece que trocaram. Senti uma reviravolta e novas tramas foram criadas. Agora todo cuidado é pouco. Peço que tomem muito cuidado com os diálogos e atentem para a trilha sonora (devo dizer que vocês mandaram muito bem com aquele chico buarque às dez da manhã do domingo, continuem assim).
Lembrem-se que as subtramas são fundamentais para a dinâmica da coisa, mas não exagerem.
Bem, o caminho é esse. Acho que vocês finalmente entenderam.
Ah, e quando quiserem dar um toque de tragédia, pensem no Woody Allen, gosto dele.
Grata,
está tudo muito bagunçado aqui
não vejo o chão sob meus pés
não alcanço o teto
não sei nem mesmo a cor das paredes desse lugar
já foram de tantas cores pelo o que me lembro…
a minha casa, às vezes, fica invisível
e tenho dificuldade em achar o caminho de volta
são centenas de quilômetros entre minha memória
e a porta da frente
nem sempre a encontro
nesses casos, me estabeleço num lugar qualquer
com um pouco de conforto e comida congelada
amigos chegam de vez em quando, não muitos
alguns, aparentemente, também não sabem onde fica a minha casa
ela não fica em uma rua
ela não fica em uma cidade
ela não fica em um país
a minha casa fica em um lugar estreito, quase inacessível
a minha casa sou eu.
eu estava lá quando
todos deram as costas e
subiram no maldito avião
eu e meu lenço estúpido
eu e minha estúpida vontade de ficar
estou aqui só pra dizer que valeu a pena
não ter morrido de inanição
nessa ilha que carinhosamente apelidei
de inferno refrigerado
– uma homenagem clara a um dos meus autores preferidos –
não perdi essa mania e nenhuma outra
ainda saio distraidamente da mesa durante as refeições
ainda gosto de friccionar os lóbulos das orelhas e
tomar banhos quentes em dias abafados
espero que a viagem tenha sido boa
sonhos abandonados não cheiram bem
no compartimento de cargas.
um sol quente, que pela manhã
tenta aplacar quilômetros de gelo e solidão
tudo vazio aqui, tudo queimando
temperaturas abaixo de zero
lágrimas em cubos
– pequenas distâncias são brutais
quando nos falta o oxigênio –
minha alma longe
tudo o que entreguei
enterrado sob a neve
tudo muito igual ali
língua, coração, palma da mão
e até os pequenos lóbulos das orelhas
tudo uma coisa só sem importância
aqui o ar é rarefeito
dói um bocado respirar
é a vida não cabendo dentro mim.
tenho uma caixa feita de ossos
para evitar desvarios
de qualquer músculo burro
ou tive, sei lá
o tal músculo bateu
inchou, murchou
deu umas cambalhotas
explodiu e se recompôs
é assim, o canalha
a gente se acostuma
pior são os estilhaços
um pedaço qualquer de alegria
que fica preso em lugares
de difícil remoção
tem o frio na barriga
tem o nó na garganta
tem uma sensação estranha
no céu da boca
tem o medo
tem o cheiro
tem sua imagem desaparecendo aos poucos
em meio a nuvens de fumaça
cartões de embarque
malas, roletas russas e saltos no escuro
quando olhei no fundo dos teus olhos
percebi que redes de proteção seriam inúteis
e que absolutamente nada poderia ser feito
para impedir que todos meus músculos
entrassem em colapso.
Não mexam aqui. Uma dor, quando mexida, vira qualquer coisa entre a sombra e o desespero. Uma dor quieta fica bege. Não tem cheiro. Deixem-me amuada nesse canto onde vezemquando bate uma brisa, onde posso ouvir os amigos gargalhando, onde escuto ainda o eco de uma promessa contrabandeada às pressas na fronteira intangível dos sentidos.